segunda-feira, 8 de julho de 2013

TRANSPLANTADOS PARA A MORTE

Órgãos contaminados matam três transplantados no Rio; estado admite transmissão de superbactéria.

Maria José: revolta e dor com a morte do marido

08/07/13





Três pacientes que receberam um fígado e dois rins de uma mulher morta no dia 10 de junho, no Hospital Municipal Souza Aguiar, vítima de um acidente de trânsito, morreram dias depois dos transplantes, com infecção generalizada. As equipes médicas que participaram dos procedimentos em três hospitais diferentes não acreditam em fatalidade.

Exames realizados nos pacientes e no líquido em que um dos rins foi transportado apontaram para a mesma superbactéria, a Klebsiella pneumoniae (KPC), resistente a quase todos os antibióticos. No relatório assinado pelo médico que retirou os órgãos da doadora, o mais estarrecedor: “inspeção com líquido livre na cavidade de aspecto sero purulento”. Apesar de ter visto pus, indicativo de infecção por bactéria, o médico prosseguiu com a captação e não teria comunicado o fato às três equipes transplantadoras.

- A doadora estava internada há cerca de dois meses na UTI do Souza Aguiar. Pacientes que ficam longos períodos em unidades intensivas têm grandes chances de estarem colonizados por alguma superbactéria, adquirida naquele ambiente. Só isso já era um sinal de alerta. Exames de rotina são realizados ali para identificar pacientes colonizados por essas bactérias - diz Júlio Noronha, médico do Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), onde um homem recebeu um dos rins e morreu sete dias depois.

Sonho realizado que vira pesadelo


Após cinco anos de espera, o ajudante de caminhão Josinaldo Severino da Silva, de 51 anos, recebeu no último dia 12 o tão esperado telefonema que o livraria das três sessões semanais de hemodiálise. Paciente renal crônico há oito anos, ele deveria ir imediatamente para o Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), onde receberia um rim. Ligou para a mulher e, impaciente, nem a esperou chegar em casa, foi se adiantando. O transplante varou a madrugada, e ele acordou no dia 13 animado.

Josinaldo esperou cinco anos por um rim
Foto: Álbum de família

No dia seguinte, entretanto, os sinais de infecção já tiravam o sorriso do rosto de Josinaldo. Cinco dias depois, a bactéria KPC tirava-lhe a vida, em função de uma infecção generalizada. Um dia antes, em 18 de junho, o quadro já havia acontecido com uma paciente de 49 anos do Hospital do Fundão (UFRJ), que recebera o outro rim da doadora morta no Souza Aguiar. Sete dias antes, em 12 de junho, outra mulher que recebera o fígado dessa mesma doadora, no Hospital Adventista Silvestre, no Cosme Velho, também não resistiu.

- Meu marido entrou andando, feliz da vida, no hospital e saiu de lá, sete dias depois, morto. O transplante era o sonho dele. Não me conformo. Antes ainda estivesse na máquina de hemodiálise. Estaria vivo - lamenta Maria José Ferreira da Silva, de 55 anos, viúva de Joselino, que ainda deixou três filhos e uma neta de 6 anos.



Maria José chora a perda do marido Maria José chora a perda do marido

Sobre a paciente que morreu após o transplante de fígado, o diretor médico do Hospital Adventista Silvestre, Rogério Gusmão, afirmou, em nota, que lamenta o ocorrido. Segundo ele, o fígado recebido pela equipe do cirurgião Eduardo Fernandes chegou “com os exames sorológicos e funcionais, nos quais foi aprovado em perfeitas condições, gerando excelentes perspectivas para a cirurgia e para o paciente indicado para recebê-lo”. Gusmão diz também que durante todo o processo, foram seguidos de forma integral todos os protocolos previstos em padrões internacionais.

Opinião de especialistas

Médicos especializados em transplantes, que preferem não ter o nome divulgado, explicam que a equipe que faz a captação de órgãos tem obrigação de analisar o prontuário do doador, verificar se há infecção e comunicar tudo isso às equipes que fazem os transplantes. Mediante essas informações, os transplantadores decidem se aceitam ou não o órgão.

- Não há tempo hábil para realizarmos exames de cultura no órgão que vem para nós. Temos que confiar nos dados da equipe de captação - explica um dos médicos.

A captação é realizada por equipes do Programa Estadual de Transplantes (PET).

No caso do rim, o órgão é transportado dentro de três sacos estéreis, um dentro do outro, e conservado no chamado líquido de perfusão, que melhora suas condições para o transplante. O rim só é retirado do saco no momento em que é implantado no paciente. Dessa forma, o exame que apontou a bactéria KPC no líquido de perfusão indica que os órgãos doados traziam o germe que tirou a vida dos três pacientes transplantados.
As repostas dos hospitais

Hospital do Fundão

A unidade afirma que o rim foi recebido com as informações sobre condições do doador e dos órgãos por documentos de praxe, que não incluem o relatório de cavidade. “Para surpresa”, apesar de o transplante ter sido um sucesso, foi observado o crescimento da bactéria no líquido de perfusão usado pela Central Nacional de Captação e Doação de Órgãos, que foi comunicada.

Hospital Souza Aguiar

A direção afirma que notifica à Central de Transplantes os casos de morte encefálica, que passam a ser acompanhados por cirurgiões do PET, a quem cabe decidir se o paciente pode ser doador.

Hospital de Bonsucesso

A unidade disse que vai se manifestar hoje sobre o caso.


Estado admite transmissão de superbactéria

A coordenação do PET, em nota, admitiu que a bactéria que matou três transplantados foi transmitida pela doadora: “Os dados de literatura de transplante mostram uma incidência de cerca de 1% de transmissão de doenças de doadores para receptores e o PET esta dentro dessa faixa. Esse foi o primeiro caso”.

O programa afirmou que o prontuário da paciente doadora, ao qual o médico tem acesso antes de retirar os órgãos, não indicava presença de bactéria. E informou que sua equipe sempre avalia clinicamente os potenciais doadores.

“O rastreio microbiológico feito na paciente apresentou resultado negativo, ou seja, a paciente não tinha um quadro clínico séptico que inviabilizasse a doação dos órgãos”.

Apesar de o relatório de captação assinado pelo cirurgião apontar aspecto “purulento” da cavidade abdominal, o programa afirma que os órgãos retirados da paciente tinham aspecto anatômico apto para transplante.

Leia aqui a íntegra da nota do Estado


Estado admite transmissão de superbactéria em transplante

A coordenação do PET, em nota, admitiu que a bactéria que matou três transplantados foi transmitida pela doadora. Leia a nota na íntegra:

“A coordenação do Programa Estadual de Transplante (PET) lamenta o falecimento dos três pacientes e informa que o prontuário da paciente doadora, ao qual o médico tem acesso antes de realizar a retirada do órgão, não indicava cultura positiva para nenhuma bactéria. O PET informa que sua equipe sempre avalia clinicamente os potenciais doadores antes da captação dos órgãos — procedimento que atende às regras estabelecidas pelo Sistema Nacional de Transplantes. No caso, o rastreio microbiológico feito na paciente apresentou resultado negativo, ou seja, a paciente não tinha um quadro clínico séptico que inviabilizasse a doação dos órgãos. No dia da captação do órgão, a paciente voltou a ser avaliada e não apresentava nenhum sinal de sepse. Além disso, no momento da captação, o cirurgião realiza uma avaliação em que o aspecto macroscópico do órgão retirado do doador é o fator mais importante para a tomada de decisão. Os órgãos retirados da paciente apresentavam aspecto anatômico apto para o transplante.

O transplante de rim deve ser feito em até 36 horas após a retirada do órgão e o de fígado, em até 12 horas. Os dados de literatura de transplante mostram uma incidência de cerca de 1% de transmissão de doenças de doadores para receptores e o PET esta dentro dessa faixa. Esse foi o primeiro caso.

De 2010 a junho de 2013, já foram realizados 954 transplantes de doadores falecidos - 27 coração, 602 rim e 325 fígado. Somente em 2013, já foram feitos 251 transplantes de rim e de fígado - 59 de fígado e 192 de rim. Já foram captados, 63 fígados e 166 rins – entre os rins, 24 foram disponibilizados para outros estados brasileiros. Desse total de 24 rins enviados para outros estados em 2013, 14 foram antes da inauguração do Centro Estadual de Transplante, que há dois meses funciona no Hospital São Francisco de Assis, na Tijuca, transformando a realidade de muitos pacientes do estado que precisavam buscar cirurgias em outras unidades da federação. Para se ter uma ideia dessa mudança, no mesmo período de 2012, quando não existia o CET, foram 40 órgãos enviados para outros estados.

Criado com o objetivo de aumentar o número de transplantes de órgãos e tecidos no Estado do Rio de Janeiro, o PET investiu na implantação de quatro Coordenações Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (Hospital Estadual Getúlio Vargas, Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, Hospital Estadual Azevedo Lima e Hospital Estadual Alberto Torres). Esta iniciativa proporcionou um contato direto entre os médicos que cuidam de possíveis doadores e os familiares destes pacientes. Além disso, o PET otimizou a comunicação com a população – através do Disque-Transplante (155), do site do programa e de cartilhas distribuídas em hospitais estaduais. O trabalho de capacitação foi constante e se deu a partir da organização de cursos, entre eles, o curso espanhol Transplant Procurement Management (TPM), um dos mais conceituados do mundo. Este trabalho transformou o Estado do Rio em uma das referências nacionais na área de doação de órgãos”.

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